As Marés : do 1500 até o  Brasil 2000.
A R de Mesquita
Departamento de Oceanografia Física
Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo
Junho de 2000
 

1500
A chegada da armada de Pedro Alvares Cabral às praias da Ilha de Vera Cruz proporcionou o encontro de duas culturas separadas por milhares de anos de "evolução", que desde então se empenham na luta pela sua preservação . "Navegar é preciso . Viver não é preciso", diziam os recém chegados,  que na época iniciavam, a "ciência" da cartografia da Terra esférica, dando os primeiros passos ao que, 500 anos após,  se  conhece como o processo de Globalização.

Através da navegação, conhecimento de posição, orientação e rumo, expandiam o seu espaço cultural "por mares nunca dantes navegados", como forma de aumentar os seus interesses e domínios comerciais. Data de 1418 a Escola de Navegação de Dom Henrique e a primeira viagem de Circunavegação Global, que teve o comando de  Vasco da Gama, se deu em 1499. Em Abril de 1500 ocorria a viagem de Pedro Alvares Cabral que, direcionada inicialmente às Índias, estendeu  "a influência  da nação de Camões" , também às terras do Novo Mundo.

A comparação das  culturas, em confronto, mostrou que elas evoluíam a passos diferentes e que  elementos culturais da  civilização ocidental de mais de 3000 anos AC, subsistiam de forma semelhante em  comunidades separadas por centenas de milhares de quilômetros de mares desconhecidos, como a dos anfitriões  inesperados do Novo Mundo.

O entendimento do céu, das estrelas, da Terra, dos movimentos do Sol e da Lua,  objeto de grandes preocupações, era deixado às conjecturas e às "pajelâncias",  como,  na terra dos recém chegados visitantes, até 1500, também era deixado. Não há informações se o movimento dos oceanos, em sincronização com o movimentos desses astros, era objeto da descrição e de interpretação da comunidade local e provavelmente essas informações tenham se perdido para sempre.

A Carta de Caminha não faz menção, bem como as rotas de navegação e das entradas de portos brasileiros da época , conhecidas como "Roteiros", não descrevem o movimento do mar devido ao fenômeno das Marés, nem quanto ao  estabelecimento de marcos indicativos (Níveis de referência) do nível médio do mar.

À vista destas considerações, o que ocorreu comparativamente nas duas  culturas em confronto, de 1500  até os dias atuais, é objeto de grande  interesse e procura, nos arquivos locais e nos arquivos que sobreviveram ao cataclismo de 1755 nas terras Boreais.

1700
O primeiro registro, em que se faz menção à preocupação das  autoridades com relação as  edificações neles/as erigidos, se deu a 21 de Outubro de 1710, através da Ordem Régia de Portugal mandando o Governador do Rio de Janeiro informar sobre as edificações na marinha ou praias da cidade. Outras Ordens Régias se seguiram até 1732 "mandando o Governador informar sobre a conveniência de se medir a distância entre o mar e as edificações e sobre qual a quantidade dela" ; outra "proibindo edificar nas praias, ou avançar sequer um palmo para o mar por assim exigir o bem público" e finalmente outra "declarando que as praias e o mar são de uso público e não podem os proprietários nas "testadas" impedir que se lancem redes para pescar".

A primeiras medições de níveis da maré nas Terras de Santa Cruz ocorreram na Baía de Guanabara , próximo à barra nos anos de 1781 a 1782, por Sanches Dorta, cerca de 100  anos após as acuradas medições propostas na Inglaterra por Robert Moray, cerca de 100 anos após a publicação  dos Principia Matemática de Newton e também, cerca de 80 anos após as tentativas de Cassini de fazer a previsão das marés baseado  nos registros de Brest.

1800
No período em que houve a instalação da corte Lusitana no Brasil, em 1808, um Decreto de 21 de Janeiro de 1809 mandou "aforar os terrenos das praias de Gamboa e Saco do Alferes, próprios para armazéns e trapiches "; um Aviso de 18 de Novembro de 1818 " declarou que 15 braças da linha d'água do mar e pela sua borda são reservadas para servidão pública e que tudo o que toca a água do mar e acresce sobre ela é da nação ". Um Decreto de 13 de Setembro de 1820 deu competência a repartição da Marinha para a concessão  em todos os portos , de qualquer porção de praia.

Já no primeiro Império , após 1822,  uma Lei de 15 de Outubro de 1831 orçou a receita e fixou a despesa para o ano financeiro de 1832 - a 1833 e uma lei orçamentária que tratou expressamente das Terras de Marinha, colocou a disposição das Câmaras Municipais Terrenos de Marinha e permitiu aos Presidentes das Províncias aforar e estipular o foro dos Terrenos de Marinha. (A definição de Terrenos de Marinha se deu através de Instrução número 348 de 14 de Novembro de 1932).As primeiras medições sistemáticas das alturas de marés , que se tem registros, ocorreu ao longo do ano de 1831, e teve como objetivo a definição, no terreno, do nível médio do mar para o porto da cidade do Rio de Janeiro. Não há notícias de que essas medições tenham se prolongado por período maior que um ano.

A cultura local, continuou, no segundo Império, a se desenvolver no sentido de ordenar e aumentar o seu domínio através de regulamentações. O Decreto número 467 de 23 de Agosto de 1846 institui a legislação sobre o pagamento de "laudêmio" pela venda de prédio rústicos e urbanos em terrenos aforados que foi seguido em 1849 pelo Decreto número 656 que dispôs sobre o pagamento de "laudêmio" das alienações e propriedades foreiras a Fazenda Nacional. As terras devolutas do Império e as que são possuídas por títulos de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como  por simples título de posse mansa e pacífica, foi definida pela Lei de número 601 . Esta Lei foi regulamentada pelo Decreto  1318 de 30 de Janeiro de 1854. Outros 18 anos se passaram para em 22 de Fevereiro ode 1868 a concessão de Terrenos de Marinha e dos reservados das margens de rios e dos acrescidos naturais ou artificiais foram  regulados  pelo decreto Lei 4 105. Para a cidade de Recife há, também,  informações de que com o intuito de se  fazer uma melhoria dos portos e estabelecimento de outras melhorias locais, recorreu-se a  observações maregráficas que se iniciaram e tiveram certa regularidade à partir de 1874.

Em 1889 a República dos Estados Unidos do Brasil foi proclamada e novos horizontes se abriam no cenário político da antiga Ilha de Vera Cruz. Entretanto, nada  havia a indicar a presença de mudanças nas contribuições, que desde o seu "achado", haviam sido feitas no sentido do aumento do seu espaço cultural. Em 1905 foi feita a primeira tentativa de organização de um serviço sistematizado de observações de nível do mar . Esse serviço esteve a cargo da Secção de Hidrografia da Inspetoria Federal de Portos Rios e Canais, que manteve estações permanentes de medições de marés em todos os portos principais do Brasil, do Chui ao Oiapoque.

Na baía da Guanabara foram realizadas medições de marés nas localidades de Santa Cruz, Arsenal de Guerra(antigo) Ilha das Enchadas, Ilha do Bom Jesus, Ilha do Boqueirão, Ilha do Brocoió e Batalha, no fundo da Baía e fora da barra da Baía, em Imbuí. No porto de Laguna foram instalados marégrafos em Carniça, Cabeçudas Estaleiro e na Barra.  A estação maregráfica da Barra forneceu as informações sobre a maré oceânica pela sua proximidade com o mar aberto; a estação do Estaleiro forneceu os elementos  da maré no canal e no porto de Laguna; a estação de Cabeçuda forneceu as características da maré na junção das lagunas de Santo Antônio dos Anjos e Imaruí e finalmente a estação de Carniça forneceu os elementos referentes as onda de maré secundária que se propaga pelo rio Tubarão.

As estações maregráficas ficavam completamente abrigadas do mau tempo e, as instalações foram feitas de forma a atender as formas da baía   . A estação  da Barra foi instalada de forma a não receber as influências das ondas refletidas. Não foram aconselhadas a instalação das estações no fundo das baías, pois as amplitudes da maré aí em geral são muito aumentadas devido à diminuição gradativa das profundidades e, há também o retardamento da manifestação do fenômeno. Para o estudo do regime das costas e propagação da maré nos oceanos, as observações (medições) eram aconselhadas a serem feitas nos Cabos, Ilhas ao largo e em oceano aberto (medições pelágicas). As escalas graduadas para a medição do nível do mar eram chamadas de merêmetros e os equipamentos, marégrafos, eram o de flutuador, Seibt-Fuess, Coast and Geodeic Survey,  e os marégrafos de pressão eram do tipo Favé.

1900
Os primeiros trabalhos relativos à determinação das constantes harmônicas de marés no país, à partir de medições de nível do mar, é devida a Alix Correa Lemos em 1908  e Luiz Lecoq d´Oliveira em 1912 .  Estes e os trabalhos de Beaufort de Oliveira,  no primeiro quarto do século, deram início aos processos de assimilação do método científico, que também chegava à terra Lusitana, para o entendimento do fenômeno das marés, nas terras tupiniquins. Assimilava a cultura tupiniquim os procedimentos de "medição" e o método científico de descrição e de análise do Velho Mundo, utilizando-os para a explicação e entendimento dos fenômenos relacionados ao nível do mar e das correntes de marés locais.

No cenário da Nova República Austral houve progresso na construção e operação  de uma rede de estações permanentes de medições de nível do mar, ao longo dos 6 mil quilômetros das costas brasileiras, que à partir de 1905 foram feitas no porto da  cidade de Rio de Janeiro  , na cidade de Fortaleza à  partir de 1910, no porto da cidade de Santos em 1920, Pelotas em 1930, Laguna em 1906, São Francisco do Sul em 1923, Florianópolis em 1923, Itajaí em 1922,  Paranaguá em 1928, e, Vitória em 1917;  Salvador à partir de 1918, Aracajú em 1935, Recife em 1935, Natal em 1939 e Belém em 1935 tem registros cotados para valores máximos, mínimos temperatura do ar e pressão atmosférica, na Portobras,  companhia de Portos da nova República, que cuidava da implantação e operação das estações permanentes de observação do nível do mar dos portos.

A assimilação do método e dos resultados científicos desenvolvidos na  Europa também obteve progressos nos trabalhos de Alix Lemos sobre o método harmônico de análise de marés  e previsão de marés, ambos em 1912 e outros sobre a teoria dinâmica da marés; sobre as  investigações de Laplace; sobre a teoria do canal de Airy, em publicação de 1928 . De mesma contemporaneidade  são notáveis os trabalhos de Belfort Vieira sobre manifestação do fenômeno da marés na costa do Brasil de 1934 e sobre a causa da marés, a dedução da fórmula do potencial de atração de um astro e o seu desenvolvimento no estudo da análise harmônica de 1936. A previsão numérica dos níveis de maré, através de máquina de Kelvin, começou a ser feita no Observatório Nacional,  para o porto do Rio de Janeiro, por volta de 1912, cerca de 32 anos após sua invenção na Inglaterra.

Na grande República Austral Tupiniquim as Tábuas de Marés, tradicionalmente fornecidas pelo Observatório Nacional, passaram no ano de 1964 a ser editadas pela Diretoria de Hidrografia e Navegação órgão do Ministério da Marinha do Brasil para os principais portos do país. Com o advento do computador essa Diretoria, passou em 1975 a fazer os cálculos das constantes harmônicas, M2, S2, M3 e outras, à partir de dados das estações permanentes de medições do nível do mar e as previsões das alturas de maré, utilizando uma  unidade de processamento IBM /370 .

A Universidade de São Paulo, 1934,  instalou na década de 50 e ainda opera, através do Instituto Oceanográfico, estações permanentes de medições do nível do mar nas cidades de Cananeia e  Ubatuba no litoral paulista. A pesquisa acadêmica das marés passou a ser feita sob a égide do "Scientia Vinces",  logo   que estimulou a criação da Universidade Estadual, que desde então, muito contribuiu à  ampliação em qualidade  da herança cultural Tupiniquim.

....até 2000
No último quarto do século XX houve o desenvolvimento das comunicações por satélites artificiais, que como no caso  da imprensa de Gutemberg no século XVI,  produziu, com a nova ciência  da informática, a segunda explosiva transmissão de conhecimentos entre as diferentes comunidades, que se formaram a  partir da herança cultural do Império Romano, incluindo o Novo Mundo ampliado pelos Lusitanos, e  agora também incluindo  as heranças culturais da África e da Ásia, tornando  mais rápida a definição dos contornos culturais do  que se entenderá  nos anos a vir, talvez.... por Civilização Global iniciada pelos Lusitanos no século XV.

De Dão João de Castro, que em Portugal, no século XVI, assimilava a cosmologia da cultura greco-romana da idade média para a descrição do fenômeno das marés,  às assimilações do século XX da cultura do romana estendida, entremeados ficaram cerca de 4 séculos de mínima, ou nenhuma participação tupiniquim na história científica das marés.

Decorridos 500 anos da primeira visita Lusitana às terras de Santa Cruz pode-se ver que apenas na segunda metade do século XX, um considerável avanço se deu no sentido de  reconhecer a ciência e o método científico como produtores de preservação e de bem estar da herança cultural da Ilha de  Vera Cruz .

Ao terminar o século XX   pode-se  olhar o futuro que se descortina à cultura local das ciências do nível do mar, como o de ativa participação  no que se divisa como a cultura  global da civilização Terrestre.

Agradecimentos

Na elaboração deste trabalho mantive    conversações com o Eng José Antônio dos Santos do Instituto de Pesquisas Hidroviárias e com o Almirante  Max Justo Guedes do Serviço de Documentação Geral da  Marinha do Brasil,  na cidade do Rio de Janeiro, que foram muito úteis para a sua composição. O Almirante Dr. Alberto dos Santos Franco permitiu acesso a várias obras de sua propriedade que foram de interesse. Por solicitação do seu Diretor Professor Shoso Motoyama, fiz  seminários sobre o assunto, dos  quais muito me beneficiei,  aos colegas do Centro de História da Ciência da Universidade de São Paulo, entre os quais o Prof Milton Vargas.
 

Referências e Bibliografia consultada

- Belfort Vieira, J. D. ( 1942). As  Marés, Observação e Estudo e Previsão no Brasil. 169p (Ver Biblioteca do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo).
-Jose Antonio dos Santos. (1999). Instituto Nacional de Pesquisas Hidroviárias. Rua do Caju. Rio de Janeiro. RJ. (Comunicações Pessoais).
-Lemos, A. (1928). Marés e Problemas Correlativos. Observatório Nacional do Rio de Janeiro. RJ. 92p
- SPU (1999). Serviço do Patrimônio da União. Ministério da Fazenda da República do Brasil. Cronologia Básica da Legislação Patrimonial.1p
-Tábua de Marés para o ano de 1989. Costa do Brasil e Portos Estrangeiros. Diretoria de Hidrografia e Navegação. Niteroi. RJ.